Prazo para produzir vacinas no Brasil pode ser “impossível”

Em meio a uma corrida mundial por vacinas contra a covid-19, o Brasil se posicionou rapidamente para ter acesso a dois imunizantes e à transferência de tecnologia para produzi-los localmente, mas a projeção de que o País poderá fabricar do zero e distribuir vacinas até meados do próximo ano parece ser excessivamente otimista, na avaliação de especialistas ouvidos pela Reuters.

Apesar da reconhecida capacidade brasileira em produção de vacinas – o País é praticamente autossuficiente na maior parte das vacinas usadas no Sistema Único de Saúde (SUS) – três especialistas, sendo dois ex-presidentes da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e um ex-ministro da Saúde, afirmaram que, mesmo quando a tecnologia é conhecida, uma transferência nesse porte leva, na melhor das hipóteses, dois anos para ser feita. O mais comum, entre três e cinco anos.

A promessa do governo federal de investir quase R$ 2 bilhões para a produção nacional pode acelerar o processo, mas dificilmente o suficiente para alcançar o calendário divulgado pelas autoridades, disseram as fontes.

Com acordos separados negociados pelo Ministério da Saúde, com o laboratório britânico AstraZeneca, e pelo governo de São Paulo, com a chinesa Sinovac, o País deve obter o Insumo Farmacêutico Ativo (IFA) para finalizar localmente duas vacinas diferentes e aplicá-las na população já no início do ano que vem, caso se provem eficazes.

No entanto, a prometida produção local ainda no primeiro semestre, que daria independência ao País, pode não sair como anunciado.

“Isso é impossível”, disse José Gomes Temporão, ex-ministro da Saúde e pesquisador aposentado da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). “Produzir de que maneira? Todas as etapas tecnológicas no Brasil é impossível. Isso demora um período grande. Pode ser que se consiga acelerar, mas não tanto.”

Tanto no Instituto Butantan, do governo de São Paulo, que fechou acordo para testar e produzir a vacina da Sinovac, e na Fiocruz, ligada ao governo federal, que assinou um pré-acordo para produzir a vacina da AstraZeneca com tecnologia desenvolvida pela Universidade de Oxford, no Reino Unido, as estimativas de produção local foram fortemente aceleradas em relação ao cronograma normal.

Marco Krieger, vice-presidente de Produção e Inovação em Saúde da Fiocruz, disse à Reuters que a intenção é tentar fazer essa transferência de tecnologia em até um ano. “O processo de transferência de tecnologia de uma vacina normalmente demora entre 5 e 10 anos, e a gente está procurando fazer isso em menos de um ano”, disse à Reuters.

Já no Butantan, o diretor do Instituto, Dimas Covas, calcula estar produzindo a vacina integralmente entre 10 e 15 meses. “Quinze meses seria um prazo bem realista”, afirmou.

Um ex-presidente da Anvisa que pediu anonimato pois tem envolvimento direto com o tema afirmou desconhecer processos de transferência de tecnologia em vacinas que tenham ocorrido tão rapidamente. Apesar de reconhecer que o momento é especial e possivelmente tenha uma concentração extraordinária de esforços e recursos, a avaliação é que o prazo não teria como ser encurtado dessa maneira.

“Se eles conseguirem envasar a vacina em um prazo curto já vai ser um grande passo. Não tem acordo de transferência de tecnologia que tenha durado menos de 5 anos”, afirmou.

Questionados sobre essas previsões, o Ministério da Saúde afirmou que é cedo para confirmar qualquer uma delas. De acordo com a pasta, o andamento da produção no Brasil vai depender dos resultados dos testes da Fase 3 que ainda estão sendo feitos.

A Fiocruz, o governo de São Paulo e o Butantan não responderam a pedidos de comentários sobre as dúvidas relativas aos cronogramas levantadas pelos especialistas ouvidos pela Reuters.

Os dois acordos firmados pelo Brasil preveem a transferência de tecnologia para que, depois de receber uma remessa inicial do insumo farmacêutico para que a vacina seja finalizada no Brasil, o país passe a fabricar a vacina por contra própria desde o início do processo, com transferência total de tecnologia.

No caso da AstraZeneca, foi assinado um documento que dará base para um acordo ainda a ser finalizado entre a empresa e a Fiocruz prevendo a compra de 30 milhões de doses antecipadas da vacina, a um custo de 97 milhões de dólares, mesmo sob o risco de o resultado da Fase 3 de testes em humanos –a última antes do registro da vacina–, não ser o esperado. Com isso, o Brasil terá a prioridade na compra de mais 70 milhões de doses no caso de confirmação da eficácia e também irá adquirir a tecnologia.

O acordo do Butantan com a Sinovac segue outro modelo, mas que também inclui a transferência de tecnologia. O instituto, que já lidera os testes da terceira fase da vacina no Brasil, investirá 85 milhões de reais para realizá-los. Em troca, o Estado de São Paulo receberá 120 milhões de doses –o suficiente para imunizar 60 milhões de pessoas– ainda neste ano, e essas doses já ficarão disponíveis para aplicação no país assim que a vacina for registrada.

Covas, do Instituto Butantan, afirma que o processo de transferência de tecnologia está em andamento “desde o primeiro momento” da parceira. “Quando foi assinado o acordo essas conversas já começaram”, disse ele à Reuters.

Krieger, da Fiocruz, explica que a fundação também está iniciando as duas atividades paralelamente: a fase de preparação final das vacinas no Brasil e a transferência de tecnologia para produção local.

“Acho que é do interesse de todos fazer isso da forma mais célere possível, mas existem alguns gargalos que podem atrasar um pouco, precisamos alguns equipamentos novos, tem prazo de entrega, qualificações, certificações, então é bom a gente ter essa margem de segurança. Esses 100 milhões nos dariam um quantitativo pelo menos cobrindo o primeiro trimestre do ano de 2021, e a gente imagina que esse é o prazo que a gente precisa para disparar a nossa produção local”, disse, citando as doses a serem finalizadas no país com IFA importado da AstraZeneca.

A velocidade com que o coronavírus se espalha pelo mundo e a quantidade de vítimas que a epidemia já fez –o Brasil deve alcançar os 100 mil mortos nos próximos dias– justifica a pressa.

O ex-presidente da Anvisa Gonzalo Vecina Neto se mostrou mais otimista em relação ao prazo, mas mesmo assim calculou em dois anos o período para que se complete a transferência de tecnologia. Ressaltou, no entanto, que os dois laboratórios públicos têm capacidade de absorvê-las rapidamente.

“Transferência de tecnologia depende da capacidade de absorção dos laboratórios”, afirmou.

Fonte: Terra