Um novo jeito de identificar (e tratar) o hipertireoidismo

Coração e intestino são apenas alguns dos órgãos prejudicados pelo hipertireoidismo (Ilustração: Adriana Komura/SAÚDE é Vital)

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Se pudéssemos comparar nosso corpo a um carro, a tireoide teria uma função dupla: atuaria ao mesmo tempo como freio e acelerador. Afinal, ela é responsável por ditar a velocidade do metabolismo e garantir que todos os processos estejam dentro de um compasso.

Sabe o que acontece quando essa glândula perde as estribeiras e acelera feito maluca? É desastre na certa! Pois isso é o que ocorre durante o hipertireoidismo, marcado pela produção excessiva dos hormônios tireoidianos T3 e T4, substâncias que determinam o ritmo de funcionamento de todas as células – da cabeça aos pés.

Calcula-se que esse problema, caracterizado por taquicardia, diarreia, queda de cabelo, tremores e insônia, atinja 1,5% da população mundial. Dá algo em torno de 2,5 milhões de brasileiros. De olho na condição, a Associação Americana de Tireoide (ATA) acaba de atualizar suas recomendações de detecção e tratamento.

“Nos últimos anos, tivemos muitos avanços científicos relacionados ao hipertireoidismo, com um grande número de estudos e achados inéditos”, contextualiza o endocrinologista Hans Graf, professor da Universidade Federal do Paraná (UFPR).

As mudanças na diretriz começam logo no diagnóstico. Antes de entrar nos detalhes, convém deixar claro que, para descobrir se uma pessoa está com a disfunção, uma simples amostra de sangue basta. Ela serve para medir os níveis do T4 livre e do TSH, um hormônio fabricado no cérebro que estimula a glândula. Se o primeiro estiver elevado e o segundo baixo, tudo leva a crer que seja hipertireoidismo. Mas essa informação sozinha não é o suficiente para decidir os próximos passos. Nessa etapa, o médico também deve investigar o fator que está provocando a condição.

E é aí que vem a novidade. Antigamente, para revelar a causa, era necessário lançar mão de exames de imagem, como a cintilografia. Agora, a ideia é priorizar a procura pelo anticorpo TRAb na circulação por meio de um teste de sangue. “A presença dessas moléculas sinaliza uma origem autoimune, ou seja, são as próprias células de defesa do organismo que estão agredindo a tireoide”, esclarece o endocrinologista Cleo Otaviano Mesa Junior, do Hospital de Clínicas da UFPR.

Nesses casos, o hipertireoidismo recebe o nome de doença de Graves. Porém, se o tal do TRAb não der as caras, os vilões são outros – agentes químicos, medicamentos e até infecções podem estar por trás do perrengue. “É a partir do momento que encontramos a causa que conseguimos definir melhor a abordagem terapêutica”, diz Mesa Junior.

Na doença de Graves, o contra-ataque costuma envolver os remédios metimazol ou propiltiouracil. Os dois impedem a ação de T3 e T4 ao inibir uma enzima primordial nesse processo. É preciso tomar de um a quatro comprimidos diariamente por dois anos ou mais – esse tempo, aliás, foi estendido na nova publicação.

“Passamos a reconhecer que a prescrição dessas drogas por um prazo maior é uma opção para certos pacientes, uma vez que os efeitos colaterais geralmente se dão nos primeiros 120 a 180 dias”, justifica o endocrinologista Douglas Ross, do Hospital Geral de Massachusetts e principal autor do documento da ATA.

Para evitar eventos adversos, como falência do fígado e queda abrupta no número de células de defesa no sangue, a diretriz reforça a importância de se fazerem alguns exames com frequência. Assim, se pintar uma alteração séria, o profissional de saúde interrompe os fármacos e contém os danos. Felizmente, essas complicações são bem raras e aparecem apenas em 0,3% das ocasiões, de acordo com as estimativas.

Há ainda que se destacar o papel de outras medicações na melhora dos sintomas. É o caso dos betabloqueadores, que ajudam a reduzir os batimentos do coração e a regular o intestino. “Eles são utilizados na fase inicial do tratamento e devem ser suspensos após a normalização dos níveis dos hormônios da tireoide”, explica Graf.

Mas os remédios não são a única alternativa para combater a tireoide acelerada. Quando a doença não tem origem autoimune ou o indivíduo deseja uma solução rápida, é possível recorrer a outros métodos, como a aplicação de iodo radioativo, que destrói a glândula, ou a cirurgia de remoção total. O objetivo das duas é acabar com ela de uma vez por todas.

“Se escolhermos um desses meios, o paciente precisa saber que tomará comprimidos do hormônio artificial pelo resto da vida”, informa o endocrinologista Geraldo Medeiros Neto, professor aposentado da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.

O guia da ATA recomenda que médicos fiquem atentos a algumas repercussões negativas de se optar pelo bisturi. Há o perigo de lesar as paratireoides, um tecido que fica junto da tireoide e influencia a absorção de cálcio e vitamina D lá no intestino. “Nos sujeitos com deficiência nessas duas substâncias, começamos a sugerir a reposição antes da operação para evitar problemas posteriores”, conta Ross. Para fugir dos riscos, é importante dar preferência a um cirurgião com bastante experiência na área e com um bom volume de casos.

O futuro (s)em risco

A nova diretriz reserva um belo espaço para discutir as particularidades do hipertireoidismo durante os nove meses de gravidez. Na maioria das vezes, a subida do T4 é vista com naturalidade, pois o bebê só desenvolve sua própria glândula após o segundo trimestre. Portanto, o organismo feminino se adapta para fabricar uma leva de hormônios extra para o filho.

“É normal que o TSH da gestante esteja próximo a zero”, nota a endocrinologista Danielle Macellaro, do Ambulatório de Tireoide e Gestação da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Nesse cenário, basta fazer um seguimento de perto e analisar os sinais, sem nenhuma medida drástica: os níveis tendem a se regularizar no decorrer das semanas.

A situação muda de figura se a mulher tem hipertireoidismo antes de engravidar. “O ideal é procurar um tratamento prévio e deixar a tireoide bem ajustada para só depois iniciar as tentativas de conceber uma criança”, avisa Danielle.

A decisão entre medicações, iodo radioativo e cirurgia vai depender da urgência e do planejamento da família. Se o projeto de ter um herdeiro não for urgente, dá pra apostar nos fármacos. Você quer ter um filho logo? Dá para considerar as abordagens mais radicais.

Mas e se a gravidez for por acidente? Calma. A primeira coisa é não perder tempo. O atraso de um ou dois dias na menstruação já é motivo para comprar um teste de farmácia – diante de um resultado positivo, o endocrinologista deve ser consultado rapidamente. O artigo da ATA indica que a futura mamãe use propiltiouracil nos três meses iniciais e depois mude para o metimazol. Esse esquema terapêutico foi o que se mostrou seguro nos trabalhos científicos.

Um zelo tão grande se fundamenta na quantidade e na seriedade das complicações que a doença traz tanto para a mulher quanto para o feto. “Há um aumento no risco de parto prematuro, aborto espontâneo, pré-eclâmpsia, insuficiência cardíaca materna e baixo peso ao nascer”, lista a endocrinologista Tania Weber Furlanetto, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Os malefícios não param por aí: estudiosos da Universidade de Aalborg, na Dinamarca, reuniram dados de toda a população do seu país e encontraram relações entre a disfunção na glândula e problemas neurológicos. Após acompanharem indivíduos por três décadas, eles concluíram que o hipertireoidismo descontrolado das mães esteve relacionado a convulsões, esquizofrenia, déficit de atenção e diminuição de QI nos filhos. E pensar que todo esse drama pode ser contornado numa boa conversa com o médico… Afinal, não faltam maneiras de botar um freio numa tireoide tresloucada.

Cigarro só piora as coisas

O tabaco é terrível para qualquer um. Porém, para quem tem hipertireoidismo, ele é ainda pior. Isso porque a inflamação provocada pelo fumo potencializa uma complicação, a orbitopatia de Graves, em que as camadas atrás dos olhos incham e empurram os globos oculares para a frente – o que os deixa literalmente saltados.

“Além disso, o cigarro atrapalha o tratamento do problema na tireoide”, alerta Mesa Junior. O documento americano reforça a necessidade de largar o vício – seja por força de vontade, seja por meio de programas estruturados contra o tabagismo.

3 tratamentos para hipertireoidismo

Remédios

É o preferido na doença de Graves, de fundo imunológico. As drogas bloqueiam a produção de T3 e T4. O uso é contínuo por até dois anos.

Iodo radioativo

Indicado quando as chances de controle com medicamento são baixas, os níveis de hormônio estão muito elevados ou há protuberâncias no pescoço.

Cirurgia

É a menos utilizada. Serve usualmente para pacientes graves, com inchaços grandes no pescoço ou com os hormônios bem desregulados.

Fonte: Editora Abril

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