O último romance do escritor israelense Amos Oz, que morreu na última sexta-feira (28) aos 79 anos, de certa forma sintetiza as questões que atravessaram toda a sua produção literária. Lançado em 2014, ano particularmente sangrento na região, “Judas” (Companhia das Letras, 368 pgs. R$ 54,90) fala sobre o perdão e a reconciliação, sobre a estupidez da guerra e a necessidade da convivência pacífica entre judeus e palestinos. Mas também aborda conflitos interiores ligados aos instintos e aos sentimentos mais íntimos, elaborando um verdadeiro tratado sobre o amor.
Ambientado no mesmo cenário de outros romances do autor, como “Meu Michel” – a Jerusalém dividida do final da década de 50 – “Judas” é, na superfície, um romance convencional, no qual trama e personagens servem como pretexto e veículo para a transmissão de determinadas ideias sobre a política e a sociedade israelenses. Mas, envolvido pela prosa sempre elegante de Oz, o leitor atento é pouco a pouco compelido a refletir sobre questões morais profundas, que dizem respeito a todos nós.
O protagonista de “Judas” é Shmuel Asch, universitário asmático, tímido e desajeitado. Morando em Jerusalém, ele frequenta reuniões de um grupo de estudos sobre o socialismo e se dedica a concluir sua monografia de pós-graduação, intitulada “Jesus na visão dos Judeus”. A pesquisa sobre a evolução histórica da percepção de Jesus o leva a questionar o papel seminal de Judas na História do Cristianismo. Mas, deslocado no ambiente familiar, Asch precisa largar os estudos depois que o negócio de seu pai vai à falência; para completar o drama, sua namorada o abandona para se casar com outro homem. Sem recursos financeiros, Asch decide sair de casa e, em busca de teto e sustento, arruma trabalho como acompanhante de um senhor idoso, Gershon Wald, professor aposentado, com quem aprende mais sobre política, filosofia e religião que nos livros da universidade.
Wald divide sua casa de pedra isolada com Atalia Abravanel, sua nora viúva e filha de um líder pacifista que morreu assassinado. Quarentona cínica e sedutora, Atalia logo se torna objeto do desejo de Asch – um desejo sem futuro e condenado ao fracasso, já que, apesar de provocante, ela se revela refratária a qualquer contato íntimo com os homens. Personagens solitários, marcados pela dor e pelo desencanto, Asch, Wald e Atalia formam assim um trio improvável, cujas histórias se entrelaçam com as reflexões do protagonista sobre a relação entre Judas e Jesus.
Há muito de autobiográfico em “Judas”, que em mais de um aspecto lembra o volume de memórias “Uma história de amor e trevas”. É claro que Asch e Wald são projeções do próprio Amos Oz, famoso por suas críticas aos governos de Israel e por sua defesa de uma solução pacífica para o conflito na região, que desde a juventude lhe custaram caro. Ele próprio rotulado como traidor por muitos de seus pares, o escritor fez de seu último romance o suporte para uma reflexão sobre o sentido da traição. “Judas” subverte, assim, a imagem do personagem bíblico que entrou para a posteridade como o traidor de Jesus. Como Abravanel, pai de Atalia, Oz também ousou perguntar se seria possível eleger um caminho histórico diferente para o povo judeu.
“Escrevi esse romance porque me chamaram muitas vezes de traidor”, afirmou Oz na época do lançamento. Mais que em qualquer outro de seus 26 romances, na narrativa de “Judas” ele parece imbuído de um senso de missão. Oz escreve para propor uma nova relação do povo israelense com o seu destino. Para os personagens de “Judas”, o único destino inevitável é o passado, sempre carregado de erros e arrependimentos: por não ser inevitável como o passado, o futuro sempre aparece como rota de fuga ou possibilidade de redenção, a depender de escolhas que são feitas pelos personagens e da capacidade que eles demonstram de cultivar a esperança. Individual e coletivamente, é preciso superar a culpa e o ódio, apagar as cicatrizes da História.

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Luciano Trigo — Foto: Arte G1
Fonte: G1