Por Lorhane Santos
A série da Netflix “Formula 1: Drive to Survive” se tornou um fenômeno entre o público, principalmente os mais jovens que começaram a acompanhar o esporte influenciados pela produção. Mas, se por um lado o resultado em trazer novos espectadores funcionou muito bem, por outro, revelou uma realidade difícil de se aceitar. Para fãs mais antigos, pilotos ou pessoas que trabalham de alguma forma com o automobilismo, o sucesso custou um pouco da essência do esporte. Em vez de destacar técnicas, estratégias e informações sobre as corridas, a série investe em drama de bastidores, rivalidades sem fundamentos e fofocas, transformando a Fórmula 1 em um reality show.
O impacto disso vai muito além da F1: em toda a cobertura esportiva nota-se um apelo cada vez maior ao sensacionalismo e à superficialidade.
Drive to Survive pode ter sido pensada como uma janela para os bastidores, mas na prática se tornou uma novela. Pilotos e chefes de equipe viraram personagens quase caricatos, com papéis bem definidos de vilão ou herói. O resultado disso pode parecer inofensivo, mas escancara um problema geracional.
Veteranos como Fernando Alonso já se manifestaram sobre o fenômeno. O espanhol comparou os novos fãs a torcedores de futebol que acompanham apenas os resultados, sem compreender o que há por trás. “Eles assistem os melhores momentos, reclamam que as corridas são longas e ficam com raiva quando o ‘vilão’ ganha. Eles sabem qual a comida favorita do piloto, a fortuna estimada, o nome da companheira e há quanto tempo estão juntos, mas não sabem qual pneu foi usado ou qual estratégia foi pensada”, disse. Alonso também critica o excesso de exposição midiática e o papel teatral que os pilotos se veem obrigados a assumir: “Dentro e fora da F1 é um grande show. Você precisa jogar um personagem, sabe? Sempre há um bom e um mau. […] As pessoas, mídia ou o que for, sempre me colocam no lado ruim.” Essas falas revelam não só o incômodo com a espetacularização, mas também o quanto a essência do esporte está sendo moldada para caber nos formatos do entretenimento rápido.
Esse fenômeno não é isolado: a geração “Drive to Survive” é a mesma geração TikTok. Jovens, ou nem tão jovens assim, acostumados a consumir informações em vídeos de poucos segundos, narrativas rápidas que não exigem muito esforço para serem compreendidas. Essa geração demonstra baixa tolerância a conteúdos longos, seja uma corrida de quase duas horas ou uma análise tática mais profunda de uma partida de futebol.
O impacto é preocupante: transmissões esportivas são recortadas em highlights para as redes sociais, entrevistas se resumem a frases de efeito e até jornalistas buscam um estilo mais performático que analítico. O imediatismo vale mais do que a reflexão.
Essa tendência já inspira propostas concretas: dirigentes do futebol sugerem encurtar partidas para atrair públicos mais jovens, enquanto na Fórmula 1 discutem formatos de sprint races para reduzir o tempo de atenção exigido. A essência do esporte, feita de longas narrativas e paciência estratégica é colocada em xeque pela lógica do consumo instantâneo.
Não se trata apenas da F1. A geração TikTok trouxe um comportamento de consumo radicalmente diferente: rapidez acima de tudo. Estudos mostram que a Geração Z prefere plataformas de vídeos curtos e informações condensadas. De acordo com levantamento da consultoria YPulse, compartilhado com o site Axios, 21% dos jovens buscam informações direto no TikTok, atraídos pelo formato acelerado. Nesse cenário, a paciência para conteúdos longos se esvai. Especialistas apontam que muitos relatam dificuldade até para terminar um livro ou assistir a uma aula completa, o foco prolongado virou desafio.
No esporte, isso já se traduz em novos hábitos. Dados recentes mostram que a Geração Z consome esportes mais pelo digital do que pela TV tradicional: 56% dos jovens assistem pelas redes sociais, superando os 54% que ainda recorrem à TV aberta. Nos Estados Unidos, 90% dos jovens consomem esportes via internet, enquanto apenas 58% acompanham eventos ao vivo, e 80% preferem o smartphone. O estudo Faces do Esporte, da MindMiners, confirma: para esses jovens, o esporte só “acontece” se estiver nas plataformas digitais. Não por acaso, em 2023 a FIFA chegou a transmitir jogos da seleção brasileira na Twitch para atrair esse público.
A busca por rapidez até influencia regras. Inspirada no imediatismo, a International Football Association Board já debateu reduzir partidas de futebol de 90 para 60 minutos. A média real de bola rolando na Premier League, inferior a 55 minutos por jogo, reforça a percepção de que longos 90 minutos entediam essa geração. Em resposta, jornalistas e organizadores procuram entregar conteúdos cada vez mais concisos. muitas vezes sacrificando o contexto e a análise.
Outro reflexo é a substituição de jornalistas e especialistas por influenciadores digitais nas transmissões. Em nome de engajamento e alcance, emissoras preferem rostos conhecidos da internet, mesmo sem formação jornalística ou capacidade de análise técnica. O resultado é a cobertura se aproximar mais do espetáculo do que de uma leitura crítica e informada.
A geração “Drive to Survive” é, no fundo, um sintoma de algo maior: a transformação do esporte em produto midiático, embalado para consumo rápido. Se, por um lado, essa dinâmica trouxe mais visibilidade e novos públicos, por outro, ameaça esvaziar a essência competitiva e cultural das modalidades. Quando tudo se resume a intrigas, personagens e enredos rápidos, perde-se a oportunidade de educar o público sobre o que realmente está em jogo.
O alerta de Alonso vai além da Fórmula 1: o risco de transformar o esporte em novela e reduzir torcedores a meros consumidores de entretenimento instantâneo. Entre corridas encurtadas, jogos mais breves e transmissões comandadas por influenciadores, resta a dúvida: haverá espaço no futuro para quem ainda se interessa pelo esporte em sua complexidade, ou só sobreviverá o espetáculo efêmero das telas?
O novo público merece, sim, formatos que dialoguem com ele. Mas quem ama a prática também merece que os esportes continuem sendo entendidos em sua complexidade, e não apenas saboreados em doses rápidas.
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