Geopark Araripe: a história da vida na Terra recontada no Ceará

“A gente se apaixona pelo Geopark Araripe. Eu já poderia estar aposentado, mas continuo por aqui em função da paixão que o Geopark desperta em cada pessoa que se aproxima dele”, relata Nivaldo Soares, mestre em desenvolvimento regional e diretor-executivo do Geopark Araripe (GA), localizado no Sul do Ceará. O sentimento de Nivaldo não é à toa. O Geopark Araripe, com aproximadamente 4 mil km², conecta a diversidade paleontológica, ambiental, histórica e cultural existente na região do Cariri. Ao todo, esse território é composto por nove geossítios, abrangendo os municípios de Barbalha, Crato, Juazeiro do Norte, Missão Velha, Nova Olinda e Santana do Cariri.

Nivaldo Soares na sede do Geopark Araripe, em Crato

Mas o reconhecimento do valor geológico dessa área também é internacional. Em 2006, o Geopark Araripe foi aceito para integrar a Rede Global de Geoparques da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). O GA foi o primeiro parque geológico das Américas e Caribe e, até o momento, permanece como o único do Brasil. A candidatura à Rede, que atualmente soma mais de 160 geoparques em cinco continentes, foi de iniciativa da Universidade Regional do Cariri (Urca), com apoio do Governo do Ceará, por meio da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Educação Superior (Secitece). A Universidade é responsável pela gestão.

Nivaldo Soares afirma que o foco do Geopark Araripe é proteção, educação e desenvolvimento sustentável. “Trabalhamos a importância de reconhecer esse território com todas essas particularidades e riquezas, mas que tem também suas fragilidades, e que é preciso cada um ser responsável e cuidar da melhor maneira possível para que esse ambiente seja utilizado e preservado”.

Geodiversidade

Geossítios são locais que apresentam elevado interesse geológico, pelo seu valor singular do ponto de vista científico, pedagógico, econômico, cultural, estético, entre outros. Esses locais também podem apresentar elevado interesse ecológico, arqueológico, histórico e cultural. Essa definição apresentada pelo Geopark Araripe traduz porque o seu território tem importância não só regional, mas mundial.

Essa relevância se deve ao fato de o Geopark Araripe compreender a Bacia Sedimentar do Araripe, que acolheu as transformações geológicas da Terra, e testemunhou a formação do oceano Atlântico – após a separação da América do Sul e da África. A bacia tem dois destaques: a Chapada do Araripe e o Vale do Cariri.

A Chapada do Araripe fica situada na divisa dos estados de Ceará, Pernambuco e Piauí. A região também abriga a Floresta Nacional (Flona) do Araripe-Apodi, a primeira unidade de conservação criada no Brasil. Imersos nessa paisagem, cada um dos geossítios está ligado a uma formação geológica e, juntos, nos contam a evolução da vida em nosso planeta. “A ideia é o que visitante percorra os geossítios conhecendo cada formação e o que elas têm para nos contar, falando do tempo geológico: o clima que predominava na época, se tem fósseis ou registros de fósseis [icnofósseis]”, explica o geólogo e colaborador do Geopark, Rafael Celestino.

Rafael afirma que quantidade e qualidade dos fósseis descobertos nesses geossítios fazem com que a área seja considerada uma das maiores jazidas fossilíferas do período Cretáceo – de 120 a 100 milhões de anos atrás – do Brasil e do mundo.

“Existe uma terminologia alemã que é utilizada para classificar locais onde os fósseis surgem em uma condição muito ímpar e peculiar. E esse local é raro acontecer pelo mundo. Quando você encontra num local, você tem uma condição dessas que eles classificam. Aqui temos duas: o membro Crato (Formação Santana), que é o calcário laminado, a pedra Cariri que o pessoal conhece; e o membro Romualdo (Formação Santana), que é onde a gente encontra as pedras de peixe; bloquinhos que a gente costuma martelar e quando abre tem um peixe dentro, um dinossauro ou qualquer outro grupo fossilizado”, detalha.

A Chapada do Araripe também se destaca pelo sistema hidrogeológico que transforma esse recorte territorial em um oásis no semiárido nordestino. “A Formação Exu presente na chapada é responsável pela absorção da água da chuva, que vai ser capeada para dentro da própria Chapada do Araripe, esta funciona como um filtro, e aí vai procurar seus escapes originando as fontes. Ela ainda tem uma leve inclinação que favorece o Ceará, porque toda essa água que ela filtra vem para o Ceará”.

A relação das comunidades locais com a água é interligada à Chapada do Araripe, com destaque para os geossítios Cachoeira de Missão Velha, Batateiras (Crato) e Riacho do Meio (Barbalha). A cachoeira é um dos principais elementos de destaque na paisagem desta região, bem como o vale de quase 3 km de extensão do místico Rio Salgado.

Cachoeira de Missão Velha, Batateiras (Crato) e Riacho do Meio (Barbalha)

Esses elementos naturais sempre coexistiram com a cultura dos povos da região, incluindo os primeiros habitantes da Chapada do Araripe, os Kariri. “Aqui tem duas comunidades de povos originários. Aí está se resgatando isso dos descendentes dos índios Kariri que ainda habitam determinadas localidades. Esse movimento de povos originários está existindo em todos os geoparques oficiais da Unesco. No Cariri, o Geopark está trabalhando nisso por meio do professor Patrício Pereira Melo [pesquisador, docente da Urca e colaborador do Geopark Araripe]”, ressalta Nivaldo.

“Ao mesmo tempo em que a gente está contando essa história geológica, paleontológica e arqueológica, passando pelos geossítios que vão de cada formação, nosso objetivo é que isso não seja o fim. Os guias instigam o visitante a querer mais, ir para o lado atual, fazendo ligações históricas e culturais”, reforça Rafael.

Tradição e pluralidade fazem do Cariri a microrregião do Ceará com mais Tesouros Vivos da Cultura. Atualmente, são 25 Mestres e Mestras – vivos (as) –, seis grupos e uma Coletividades reconhecidos (as) pelo Governo do Ceará, por meio da Secretaria da Cultura, como difusores de tradições, da história e da identidade, atuando no repasse de seus saberes e experiências às novas gerações.

A religiosidade é outra característica que atrai milhares de romeiros que desejam percorrer os mesmos caminhos da fé trilhados por José Antônio de Maria Ibiapina, Padre Ibiapina, e posteriormente, Cícero Romão Batista, o Padre Cícero. Com isso, um dos pontos mais visitados do Geopark Araripe é o geossítio Colina do Horto (antiga Serra do Catolé), onde fica uma igreja e a estátua e o memorial em homenagem ao Padre Cícero. O local recebe 2 milhões de visitantes anualmente, segundo dados de 2019.

Estátua de Padre Cícero na Colina do Horto

Para o ecoturismo e a educação, são desenvolvidas diversas iniciativas, com destaque para o circuito de corrida e ciclismo que envolve todos os nove geossítios e as comunidades. “Temos várias outras ações, como exposições temáticas, oficinas de cordéis e de réplica de fósseis, produção artesanal das mais diversas áreas, com destaque para utilização da pedra Cariri, entre outras”, cita Nivaldo Soares.

De acordo com o diretor-executivo, há previsão para a criação de mais dois geossítios no município de Crato: Caldeirão da Santa Cruz do Deserto, relacionado à experiência de partilha, oração e trabalho conduzida pelo beato José Lourenço, orientado pelo Padre Cícero, na comunidade do Caldeirão; e Santa Fé, que se localiza no distrito de mesmo nome e abriga paredões que preservam inscrições rupestres. “Os estudos para esses dois já estão praticamente prontos para serem incorporados a um relatório final e um posterior reconhecimento”, pontua Nivaldo.

Riqueza paleontológica

“Aqui é tão especial que consegue preservar coisas mais delicadas como a asa de uma libélula, que é a marca do Museu, e organismos que viveram uma semana e foram fossilizados. Mas a gente tem dinossauros e pterossauros. Uma das maiores quantidades de pterossauros são daqui do Araripe, cerca de 25. Esse número todo dia muda porque saem coisas novas”, destaca Alysson Pinheiro, biólogo, professor da Urca e diretor do Museu Museu de Paleontologia Plácido Cidade Nuvens. .

Doutor em Ecologia e Recursos Naturais, Alysson também é responsável pela descoberta, em 2016, de uma nova espécie endêmica de caranguejo de água doce na área do Geopark Araripe, o kingleya attenboroughi,

 

As atividades científicas desenvolvidas nos geossítios têm uma ponte de diálogo com o Museu de Paleontologia, que recebe 30 mil visitantes por ano, e carrega o nome de uma das primeiras pessoas a perceber a relevância do material fossilífero da Chapada do Araripe. “Plácido, fazendo seu doutorado na Itália, viu sendo comercializados em feiras nas praças os fósseis daqui de Santana do Cariri. Os mesmos fósseis que aqui ele encontrava em qualquer lugar, chutando, andando ou roçando a terra. Então, quando ele volta do seu doutorado, vira prefeito e cria o Museu [1985] e, em seguida, doa para a Urca [1991]”, conta Alysson.

Os geossítios que se destacam por essa riqueza paleontológica são: Pedra Cariri, Floresta Petrificada e Parque dos Pterossauros. Este último é área de escavações e fica situado próximo ao Museu de Paleontologia, em Santana do Cariri. “No passado, antes da pandemia, eu observava que naquele geossítio as crianças queriam botar o chapeuzinho e pegar o martelinho. Se deixasse eles iriam embora com a carteirinha de paleontólogo ou paleontóloga”, recorda Rafael Celestino.

Floresta Petrificada (Missão Velha) e Parque dos Pterossauros (Santana do Cariri)

Estar no Parque dos Pterossauros e se sentir um descobridor foi um dos marcos na história da família de Antônio Araújo. “Meu pai [Bonifácio Malaquias Ferreira] trabalhava na roça e encontrava os fósseis em cima do solo. Com o passar do tempo, ele disse: eu vou ver o que tem nessas pedras, ver que mistério é esse. Quando abriu viu aquele peixe, aquela coisa linda. Quando soube que era proibido vender, ele foi procurado pelo professor Plácido, aí passou a integrar o grupo da Urca e fazer o trabalho com os pesquisadores para contribuir com a humanidade”, diz Antônio.

Antônio atua como vigilante das trilhas e escavações do Parque dos Pterossauros

“Um dos papéis mais importantes do Museu de Paleontologia é fazer o link da sociedade civil com o conhecimento técnico-científico. A gente precisa mostrar esses fósseis e contar a história deles, para que todo e qualquer um entenda o que é, entenda a importância, e ajude a preservar e disseminar esse patrimônio”, diz Alysson, enfatizando que lugar de fóssil é no Museu.

Em setembro deste ano, o Museu foi reconhecido como patrimônio cultural de Santana do Cariri.

Os principais representantes do acervo guardado e protegido pelo Museu de Paleontologia são: troncos petrificados (por silicificação); impressões de samambaias, pinheiros e plantas com frutos; moluscos, artrópodes (crustáceos, aranhas, escorpiões e insetos); peixes (tubarões, raias e diversos peixes ósseos), anfíbios e répteis (tartarugas, lagartos, crocodilianos, pterossauros e dinossauros).

Feito de gente e histórias

O Geopark Araripe guarda lendas transmitidas de geração em geração, é o que afirma a historiadora Pedrina França Pereira. Uma dessas lendas envolve o geossítio Pontal de Santa Cruz, um mirante próximo à Santana do Cariri. “Segundo os populares mais antigos da comunidade, eles escutavam barulhos no topo da Chapada do Araripe, e começaram a relacionar isso a demônios. Aí resolveram fincar uma cruz no topo da chapada para espantar esses demônios”, relata Pedrina.

A lenda do Pontal e a vista da Chapada do Araripe encantaram a turista recifense Sandra Oliveira em sua primeira visita ao Cariri e ao Geopark. “Eu faço trilha que envolve tudo, porque gosto de conhecer a cultura e a culinária. Com certeza, eu retornarei e acredito que mais gente também, porque quando é legal a gente compartilha”, garante.

Sandra Oliveira, natural de Recife, ficou encantada diante da paisagem e lendas do Pontal

As histórias fortalecem a relação que as pessoas têm com esse território. Esse pertencimento foi um dos motivos que incentivaram a comunidade próxima à Ponte Pedra, localizada em Nova Olinda, a elaborar uma solicitação pública para que a estrutura se tornasse um dos geossítios.

Para a geologia, a Ponte de Pedra está ligada à Formação Exu, que é um arenito poroso e capeia a Chapada do Araripe. “Dentro de uma dinâmica natural, a Ponte de Pedra foi esculpida. A gente entende que o canal de drenagem à época da existência daquela estrutura, era um canal de drenagem bastante ativo. Aí foi trabalhando a rocha de modo que constitui aquela ponte. Nós fizemos um trabalho geológico que constatou que aquela ponte era um pouco maior”, diz Rafael Celestino.

Os moradores gostam de contar que a ponte era trilhada pelos antigos vaqueiros que povoaram as cidades de Nova Olinda e Santana do Cariri. O local também guarda registros arqueológicos, como gravuras e pinturas rupestres, além de cerâmica e material lítico que eram usados pelos Kariri. “A Ponte é tida como um local místico. Segundo as lendas, ali seria uma ponte encantada que daria acesso a um castelo também encantado. Essa passagem da ponte seria protegida por um ser guardião do portal de entrada, metade serpente e metade mulher”, explica Pedrina.

Patrimônio Natural e Cultural

Esses relatos e registros arqueológicos sobre a cultura Kariri são pesquisados e salvaguardados pela Fundação Casa Grande Memorial do Homem Kariri (FCG-MHK), em Nova Olinda. Implantada em 1992 pelo casal de músicos, pesquisadores e arqueólogos Rosiane Limaverde e Alemberg Quindins, a FCG desenvolve programas que valorizam a cultura através da arqueologia mitológica. A Casa está fundamentada na Arqueologia Social Inclusiva, promovendo a formação cultural e social de crianças e jovens e seus familiares. São as crianças as responsáveis por guiar os visitantes pela Casa e compartilhar as histórias sobre a região e seu povo.

A FCG sedia o Instituto de Arqueologia do Cariri Dra. Rosiane Limaverde, vinculado à Urca, e recebe estagiários da Universidade e do Geopark Araripe. Atualmente, a instituição coopera com o essas e demais instituições públicas e privadas na elaboração do Dossiê para candidatura da Chapada do Araripe como Patrimônio Cultural e Natural da Humanidade, proposta que será enviada à Unesco em 2023.

“O Instituto de Arqueologia tem sido um braço muito forte na escrita do Dossiê, tanto pelo trabalho de levantamento arqueológico desenvolvido por Rosiane Limaverde, que iniciou esse trabalho de levantamento de sítio, cadastro e reconhecimento dessas paisagens, não só na pesquisa de graduação, mestrado e doutorado dela, mas desde a pesquisa da década de 1980 que ela e Alemberg fizeram dos sítios mitológicos. Então, para compor essa paisagem cultural do Cariri, a gente tá destacando também esses pontos de memórias, esses pontos encantados, que são esses sítios mitológicos e arqueológicos”, detalha a arqueóloga da FCG-MHK, Lucineide Marquis.

Além de apoiar a elaboração do Dossiê, o Governo do Ceará, por meio da Secult, deu mais um passo importante para fortalecer a candidatura da Chapada do Araripe, enviando um projeto de Lei à Assembleia Legislativa para a criação da Chancela Cultural na legislação estadual de patrimônio. Isso permite que seja conferido à Chapada do Araripe esta chancela como Paisagem Cultural do Ceará. O projeto foi aprovado na AL em 15 de julho deste ano.

“Para nós, a Chapada do Araripe, independente do resultado da Unesco, já é um Patrimônio. Mas esse reconhecimento oficial vai trazer uma valoração para a região, que pode acarretar no desenvolvimento turístico e científico”, conclui Marquis.

Fonte: Governo do Ceará