Falta de bonecas negras leva baiana a criar linha de brinquedos afirmativos: ‘Ferramentas de construção de identidade’

A 'Turma da Amorita' perpassa pela diversidade cultural e identitária do povo negro e faz referência a personagens históricos — Foto: Arquivo Pessoal/Amora Brinquedos Afirmativos

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“Procuram-se bonecas pretas, procura-se representação”. O refrão da música cantada pela baiana Larissa Luz reflete a escassez de representatividade no mercado infantil, que foi o pontapé para a criação da Amora Brinquedos Afirmativos, iniciativa da designer baiana Geo Nunes.

Para desenvolver uma ação social de Dia das Crianças, em Salvador, ela foi atrás de brinquedos que representassem as crianças da capital mais negra do país, mas não achou o suficiente.

“Encontrei na loja de brinquedos, entre centenas de bonecas e dezenas de prateleiras, apenas uma boneca preta. Um modelo que não tinha roupa, apenas uma fraldinha colorida. Para as bonecas loiras, havia fadas, médicas, dançarinas e diversas outras. Então, a sementinha foi plantada em outubro de 2015 e ficou germinando, mas o projeto surgiu, de fato, em 2016”.

Geo explica que os brinquedos da Amora partem de uma necessidade social de reafirmar a identidade da criança que tem acesso ao objeto.

“A pergunta que fica sempre é por que que os brinquedos, que são uma das primeiras ferramentas de construção de identidade oferecidas para o indivíduo ainda na infância não versam sobre a diversidade do nosso país? Por que se insiste em universalizar uma tez como sendo a única existente quando temos diversas tonalidades de pele?”, questiona Geo.

A baiana Geo Nunes é designer e criadora da Amora Brinquedos Afirmativos — Foto: Arquivo Pessoal/Amora Brinquedos AfirmativosA baiana Geo Nunes é designer e criadora da Amora Brinquedos Afirmativos — Foto: Arquivo Pessoal/Amora Brinquedos Afirmativos

A baiana Geo Nunes é designer e criadora da Amora Brinquedos Afirmativos — Foto: Arquivo Pessoal/Amora Brinquedos Afirmativos

Todos os modelos da Amora têm vestimentas que fazem referência à cultura africana, seja nas estampas das roupas, nos turbantes ou mesmo na cauda de sereia.

“Minha cabeça não para, em tudo eu vejo referências. O turbante faz parte da identidade da Amora, todas as Amoras têm turbante, mesmo as sereias. As sereias fazem referência à religião de matriz africana, tanto que uma delas se chama Ynaê, um dos muitos nomes atribuídos a Yemanjá”, diz Geo.

Para ser ainda mais inclusiva, a Amora também produz bonecos. A “Turma da Amorita” perpassa pela diversidade cultural e identitária do povo negro, desde os cabelos às referências de personagens históricos.

“A turma da Amorita são três personagens, Luiz, Luiza e Mai. A ideia deles é dar ainda mais diversidade, já que cada um tem suas características próprias. Mai, por exemplo, tem cabelos ‘blackpower’ e quer ser juíza quando crescer; Luiza – que possui o nome inspirado em Luisa Mahin, tem o cabelo de dreadloacks rosa e será estilista de moda; enquanto Luiz, que eu possui o nome inspirado em Luiz Gama quer ser um astronauta famoso da Nasa”.

Falta de oferta na procura das bonecas foi o pontapé para a criação da Amora  — Foto: Arquivo Pessoal/Amora Brinquedos AfirmativosFalta de oferta na procura das bonecas foi o pontapé para a criação da Amora  — Foto: Arquivo Pessoal/Amora Brinquedos Afirmativos

Falta de oferta na procura das bonecas foi o pontapé para a criação da Amora — Foto: Arquivo Pessoal/Amora Brinquedos Afirmativos

Formação

Para a psicóloga Letícia Vieira, o conceito afirmativo dos brinquedos ajuda na formação dos pequenos tanto como indivíduos, como quanto comunidade.

“Quando uma criança tem um brinquedo desse em mãos, ela se enxerga ali e passa a ter uma perspectiva social de existência. É inerente do indivíduo querer se enxergar nos espaços. A sensação é parecida a quando a gente vê pessoas com características, físicas ou não, semelhantes às nossas. Seja esse caráter de reflexo coletivo, como um conjunto de torcedos do Brasil na Copa do Mundo, seja de caráter pessoal, como encontrar uma pessoa com um corpo parecido com o seu na praia”.

Geo concorda: “A ideia dos brinquedos é mostrar para a crianças que, assim como aqueles personagens ali, que se parecem com elas de alguma forma, elas podem acessar outros locais de fala e poder, e não apenas o que a sociedade muitas vezes os enquadra”, pondera.

Se a média nacional da população negra no país é de 55,4%, por que o número de bonecas pretas produzidas e comercializadas não é proporcional? A psicóloga explica:

“Esse número pode partir de várias referências históricas eurocêntricas, que sempre determinaram os padrões de ser humano, digamos assim. Se a gente pensa em bonecos, vem à cabeça a Barbie e o Ken. Visualmente, são ideiais distantes da nossa população. A gente tem uma parcela gigante da população que não é branca, estamos entre os países com o maior número de obesos do mundo e nossos brinquedos não refletem isso”, argumenta.

Negócio

 Hoje, os brinquedos da Amora são vendidos em três lojas colaborativas da cidade de Salvador e online através do site da marca — Foto: Reprodução Hoje, os brinquedos da Amora são vendidos em três lojas colaborativas da cidade de Salvador e online através do site da marca — Foto: Reprodução

Hoje, os brinquedos da Amora são vendidos em três lojas colaborativas da cidade de Salvador e online através do site da marca — Foto: Reprodução

Antes de virar uma marca comercial, a proposta da Amora era diferente. Ao notar a falta do mercado, Geo passou a produzir as bonecas para presentear.

“A Amora nem nasceu com o propósito de se tornar negócio. Lá no comecinho, eu produzia as bonecas e dava pra meus amigos, doava para crianças em geral. Mas a partir do momento que eu entendi que a Amora precisava de sustentabilidade financeira, para poder ter capital para adquirir matéria-prima e insumos, eu transformei o projeto social num negócio social.

Dados de estudos levantados pela campanha ‘Cadê Nossa Boneca?’, da ONG baiana Avante, aponta para o seguinte percentual: apenas 3% das bonecas vendidas no Brasil são negras.

Além do percentural de bonecas comercializadas, o levantamento da Avante aponta, ainda, que de todas as bonecas fabricadas no país, somente 7% são negras. Em 2016, o percentural era de 6,3%.

Esse crescimento, mesmo que pequeno, se reflete nas vendas da Amora, em Salvador. Hoje, os brinquedos são vendidos em três lojas colaborativas da capital baiana e online através do site da marca.

“Um fator que contribui para esse crescimento são os prêmios alcançados, como o Jovem Empreendedor Social, que a Amora alcançou em 2017, e a menção honrosa no ‘Here For Good 2018’, premiação internacional que reconhece iniciativas de impacto social que conferem um bem à sociedade”.

Além disso, a Amora Brinquedos Arfirmativos foi o único projeto baiano selecionado pelo edital Negras Potências, dentre 172 inscritos. O projeto é um financiamento feito a partir de uma parceria entre a plataforma Benfeitoria e o Baobá, fundo para equidade racial, de empoderamento de meninas e mulheres negras. Com isso, a Amora vai poder impactar a vida de 2000 crianças, com práticas de promoção de igualdade racial.

Visão social

Para ser ainda mais inclusiva, a Amora Brinquedos Afirmativos também produz bonecos — Foto: Arquivo Pessoal/Amora Brinquedos AfirmativosPara ser ainda mais inclusiva, a Amora Brinquedos Afirmativos também produz bonecos — Foto: Arquivo Pessoal/Amora Brinquedos Afirmativos

Para ser ainda mais inclusiva, a Amora Brinquedos Afirmativos também produz bonecos — Foto: Arquivo Pessoal/Amora Brinquedos Afirmativos

Para que mais crianças tenham acesso a brinquedos afirmativos, a Amora Brinquedos doa uma peça a cada venda.

“O brinquedo é distribuído gratuitamente para escolas públicas nos eventos que realizamos chamados de ‘Eu brinco, Eu existo!’. A ideia é que esses brinquedos sejam utilizados pelos educadores das escolas como ferramentas lúdico-pedagógicas que possibilitem o diálogo sobre diversidade e identidade”, conta Geo.

Quando passou a produzir os brinquedos para comercializar, ela diz que passou a perceber a importância social que estava por trás do seu trabalho.

“Entendi que o impacto seria muito maior se ao invés de distribuir aleatoriamente os brinquedos, eu levasse para escolas, para que eles pudessem ser utilizados não só por uma criança apenas, mas por toda a comunidade escolar, que gira em torno de 200 crianças por ano letivo. Ou seja: uma única boneca deixaria de impactar uma criança para impactar então cerca de 200 por escola”, avalia.

Ainda segundo ela, as doações para essas escolas são uma forma de ajudar a aplicação da lei 10.639: “A lei existe desde 2015 e regulamenta o ensino da cultura e história africana, mas não é amplamente utilizada nos espaços educativos como deveria ser”, avalia.

Fonte: G1

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